segunda-feira, 2 de setembro de 2013

O que significa Referencial Teórico?


Zuleica Maria Patrício Karnopp



Considere o que aconteceria se um construtor construísse uma casa sem a planta? Ou, como perguntam Watson e Mayers (1981), como soaria uma sinfonia se dentre os sessenta músicos de uma orquestra cada um tocasse Mozart de acordo com sua percepção e vontade? Particularmente, considere um grupo de profissionais num dado contexto, como da saúde, da educação, da engenharia ou da administração de uma organização, que resolvesse trabalhar sem uma compreensão de grupo ou sem alguns conceitos e objetivos comuns?



Cada trabalhador procederia a sua maneira, de acordo com seu referencial e de sua compreensão e interpretação da situação. Imagine o que aconteceria a um cliente que se expõe a vários profissionais de um mesmo serviço se cada um destes agisse de acordo com suas convicções particulares? Espera-se esse tipo de atitude quando o trabalho é individual, tal como a apresentação de um violinista, ou como um artista plástico criando sua obra, mesmo assim, de alguma forma, o profissional poderia estar buscando agradar o público.


Na perspectiva de trabalho coletivo - “com outros referenciais” - um profissional poderia estar dificultando sua sintonia com o mundo, caso ainda não concebesse o papel dos referenciais na orientação de expectativas, projetos, construções e até das práticas cotidianas. Mais difícil seria se este profissional não compreendesse que há variedades de referenciais e que cada pessoa ou grupo, com quem interage, pode estar expressando referenciais distintos uns dos outros.


Possivelmente, sem essa compreensão, o profissional quando em situações contraditórias, em razão de concepções diferentes, tenha dificuldades de leitura de mundo e de relacionamento interpessoal. Muito comum acontecer com o indivíduo que já incorporou um referencial em suas práticas - uma identidade de trabalho – e que o considera “único” ou “sem questionamentos”. Mais difícil ainda quando o sujeito não dá abertura para diálogos (Patrício, 1995b) .

Voltando à analogia da construção civil e da sinfonia: espera-se que o construtor da casa siga o plano do arquiteto. Entretanto, espera-se que o plano – a planta – reflita as pessoas que viverão na casa: seu estilo de vida, suas preferências pela textura e cor de paredes, suas necessidades e seus recursos econômicos para a construção e manutenção desta. Da mesma maneira haverá indivíduos que prefiram ouvir Mozart tocado a partir de uma única partitura (Watson, Mayers, 1981).


Uma sinfonia de Bach, por exemplo, pode ser tocada por diferentes arranjos, mas a composição original – a planta – é mantida. E é esta a essência que confere a identidade “Bach”. Assim também ocorre com o arranjo que poderá expressar a identidade própria do autor que o compôs, mas a sinfonia ainda terá a identidade Bach.

Um referencial, expressa um “estilo”. Tem uma cara própria - uma “certa” identidade: a identidade de quem o expressa ou daquele que encomendou a obra, seja esta de qualquer natureza.


No campo acadêmico, uma estrutura referencial, pode ser identificada por “estrutura conceitual”, “marco de referência”, “marco teórico” ou mesmo “referencial teórico”. Essa unidade é construída pelo autor com base na revisão da literatura e em conhecimentos empíricos, legitimados, em especial, quando originados de uma práxis.

Watson e Mayers (1981) especificam o referencial como “estrutura conceitual” e a definem como sendo a descrição das idéias sobre o mundo em questão, entendendo que esta descrição define parte daquele mundo e explica como cada parte se ajusta e funciona para criar o “todo”.


Reforçando essa definição, as autoras apresentam a “estrutura conceitual” como um conjunto de afirmações que descrevem as idéias ou noções de pessoas sobre a realidade derivada ou prevista sobre o mundo, ou universo, o qual deseja ou necessita abordar, como o currículo de um curso, um projeto de pesquisa, um programa de qualidade de vida, ou mesmo um serviço institucional, seja este de caráter público ou privado.

Assim, para visualizar o universo de maneira a formular a estrutura conceitual, é preciso identificar e definir as partes componentes, suas funções, características próprias, bem como a maneira como essas partes se inter-relacionam e como interagem com o universo. (Watson, Mayers, 1981).

Definindo as várias partes e demonstrando como elas se relacionam umas com as outras, a estrutura conceitual, segundo percepção de Watson e Mayers (1981), permite uma visão mais ampla do todo e torna possível o desenvolvimento de critérios para o levantamento, acompanhamento da execução da proposta e para a avaliação da situação.


Neste contexto, seus criadores (designers) precisam decidir o que desejam alcançar e conhecer os ingredientes que tornarão tal concepção (criação) possível. Eles precisam saber também, como empregar métodos necessários para levar seus conhecimentos à realidade. Em essência, a estrutura conceitual pode ser vista como uma “planta” para um programa, que tem como base (Watson, Mayers, 1981).

Assim, uma estrutura conceitual é, de certa forma, uma visão de mundo que guia o olhar e a abordagem de um indivíduo ou de um grupo, e também suas decisões, em relação a uma dada situação. Por isso, um referencial é bem mais complexo que um quadro de conceitos ou um elenco de idéias geralmente denominado “definição de termos”.

Uma estrutura referencial pode estar expressando um conjunto complexo de idéias, as quais representam expectativas, crenças, valores, objetivos, conhecimentos e práticas, incluindo experiências empíricas e de pesquisa científica, permeadas pela afetividade que seus autores têm sobre determinado fenômeno (realidade em foco).



Portando, simbolicamente, um marco referencial representa os óculos que uma pessoa coloca para olhar um fenômeno, para agir no seu cotidiano, seja na produção de projetos seja nas atividades que concretizam estes, o que confere a coerência entre o pensar e o fazer. Por exemplo: óculos de cor verde promovem imagens de cor verde, óculos de cor amarela promovem imagens de cor amarela; óculos de lentes com poderes de ampliar imagens, também vão mostrar aquilo que não é visto á olho nu. Os instrumentos de um método subsidiam esse evento: contribuem para identificar dados.


Numa visão qualitativa da realidade (óculos de visão qualitativa), compreende-se que uma única estrutura conceitual – uma única teoria - não dá conta de atender todas as nossas expectativas, mas ela é a base para o desenho e acompanhamento de projetos, sejam estes acadêmicos ou da vida cotidiana, inclusive para a incorporação de outros saberes teórico-práticos durante o processo.

A leitura analítica de uma atividade social mostra que as ações humanas têm origem nos conceitos, nas idéias e nos sentimentos que temos em relação a determinado fenômeno. Entenda-se conceito segundo Meleis (1985), como uma imagem mental da realidade tingida com a percepção, experiência e capacidade filosófica do pesquisador (do sujeito que está dando sentido).

Isso vale dizer, segundo Patrício (1990), que um mesmo conceito pode ter significados diferentes, pois esses dependem da percepção de quem o está interpretando. Sendo assim, continua a autora, a escolha de um referencial, ou de bases conceituais para sua concepção, não determina de forma linear que os conceitos do autor sejam utilizados totalmente a partir da visão de mundo deste autor, mas sim que eles possam ser interpretados para estabelecer conexão com a visão de mundo de quem está trabalhando com estes conceitos.


Esse aspecto também reforça a possibilidade constante do ser humano exercitar seu potencial de re-criar conceitos e práticas, a partir de processos de diálogo consigo mesmo e com os outros seres humanos, nas diversas situações que envolvem interações que estimulam revisão de idéias e busca de soluções para problemas particulares e comunitários.

Academicamente, um marco conceitual apresenta um conjunto de conceitos que tem como objetivo guiar a produção de conhecimentos, aplicados e fundamentais, e a construção de programas de ensino ou mesmo de ações para transformação de uma dada realidade. Para tanto, seus conceitos necessitam de operacionalização, ou seja: há necessidade de torná-los aplicáveis, geral e especificamente, ao contexto em questão, o que o tornaria um referencial teórico-metodológico e até um “paradigma” (Patrício,1990).


Um paradigma contém, para todos os discursos que se realizam sob seu domínio, os conceitos fundamentais ou as categorias mestras de inteligibilidade, ao mesmo tempo que o tipo de relações lógicas de atração/repulsão (conjunção, disjunção, implicação e outras) entre esses conceitos e categorias. Assim os indivíduos conhecem, pensam e agem conforme os paradigmas neles inscritos culturalmente (Morin, 1998, p. 268).

A concepção trazida por Kuhn (1978) em sua obra “Estrutura das revoluções científicas” mostra bem o poder de um paradigma como referência que conduz o mundo da ciência, posto que um paradigma representa o reconhecimento e a aplicação de um conjunto de conceitos, métodos e técnicas por uma comunidade de cientistas.

Fazendo síntese do já dito, paradigma representa um conjunto de teorias e técnicas que envolvem crenças, valores e interesses de quem o produziu e aplica, e que costuma ser compartilhado por uma comunidade humana, seja esta científica ou do senso comum, como referência para guiar o pensar-fazer social (Patrício, 1999).

Nesse sentido, a atenção que se deva dar aos referenciais torna-se ainda mais importante e necessária quando em trabalhos multidisciplinares, tendo em vista a diversidade de crenças, valores, conhecimentos e práticas – e sentimentos – presentes nas situações de discussão e de construções coletivas. Mais importante isso se faz quando o objetivo do trabalho é interdisciplinar. Neste caso precisa haver todo um movimento transcultural e transpessoal com os participantes, no sentido de “preparar o campo”, o “cenário”, para o processo de elaboração, aplicação e avaliação de referenciais para trabalho coletivo (Patrício, 1995a).



Todo o indivíduo possui um referencial sobre determinado fenômeno. Na medida em que esse indivíduo interage e troca informações com outros seres humanos e o ambiente em geral, seu referencial está sujeito a sofrer modificações.

Nessa perspectiva de processos contínuos de ensinar-aprender, todo o referencial está exposto a processos de re-criação. Isso sugere reflexão, exercício de liberdade e tomada de decisões, o que estimula possibilidades do ser humano expressar seu potencial de criatividade e de desenvolver condições para aplicar suas idéias e ideais, seus princípios éticos e estéticos, para dar conta de abordar a realidade em constante transformação.
REFERÊNCIAS

KUHN, K.
Estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1978.
MELEIS, A.I.
Theoretical nursing’s development. Philadelphia: Lippincott Co, 1985.
MORIN, Edgar.
O método 4 - as idéias. Porto Alegre: Sulina, 1998.
PATRÍCIO, Z.M.
A prática do cuidar - cuidado à família da adolescente grávida através de um referencial de enfoque sócio-cultural. 1990. Dissertação (Mestrado em Enfermagem)- Curso de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 1990.
_______.
A Dimensão felicidade-prazer no processo de viver saudável individual-coletivo: uma questão de bioética numa abordagem holístico-ecológica. 1995. 215 f. Tese (Doutorado em Filosofia da Saúde-Enfermagem)- Curso de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 1995a.
_______. Nem talco nem diamante: a riqueza de um processo de ensino-aprendizagem participante na área da sexualidade-adolescência. In:
Texto & Contexto – Enf, Florianópolis,v.3, n.2, p.93-109, jul./dez., 1994b.
_________. Abordagem interdisciplinar e transdisciplinar no processo de construção do conhecimento e de transformação da realidade. In:
Oficina de Trabalho Docente: Interdisciplinaridade. 1995. Curso de Mestrado em Educação da Universidade Franciscana de Santa Maria-RS. Santa Maria. 1995b. Mimeografado.
_______. Qualidade de vida do ser humano na perspectiva de novos paradigmas: possibilidades Éticas e Estéticas nas Interações Ser Humano-Natureza-Cotidiano-Sociedade. In: PATRÍCIO, Zuleica M.; CASAGRANDE, Jacir L.; ARAÚJO, Marízia F. de (Orgs.). Q
ualidade de Vida do Trabalhador: uma abordagem qualitativa do ser humano através de Novos Paradigmas. Florianópolis: Ed. do Autor, 1999, p. 19-88.
________. O cuidado com a qualidade de vida dos adolescentes: um movimento ético e estético de “koans” e “tricksters”.In: RAMOS, Flávia; MONTICELLI, Marisa; NITSCHE, Rosane.
Projeto Acolher- um encontro com o adolescente. Brasília: ABEN, 2000.
WATSON, A.B.; MAYERS, M.
Assessment and documentation: nursing theory in action. Thorofare. N. Jersey: Charles Slack, 1981.

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